Em “Crônicas de um mentiroso – Era uma vez no Nordeste…”, o juiz e escritor narra a jornada de um homem que atravessa o século 20 entre soldados, cangaceiros e revolucionários, confrontando as próprias verdades em meio à violência e ao amor.
“Era eu, a vereda, e dois cadáveres ensanguentados. Primeiros corpos crivados por balas a serem captados por estes olhos, cujas gravuras se carimbariam para o resto da vida em meu juízo. Morte ao vivo e a cores. Dois tiros bem dados por um padre. E isso era só o começo da aventura.”
Trecho do livro
O escritor e juiz federal alagoano Kleiton Ferreira lança Crônicas de um mentiroso – Era uma vez no Nordeste... (Editora Labrador, 2025, 368 págs.), romance histórico que atravessa os principais conflitos do país no século 20. O protagonista Paulo, narrador da trama, é lançado ainda jovem nas entranhas impiedosas e violentas de grupos revolucionários armados. Astuto e destemido, o rapaz se vale de artimanhas para sobreviver e desvendar mistérios do próprio passado.
Nessa trajetória, ele encontra figuras históricas marcantes, como o político comunista Luís Carlos Prestes e o explorador britânico Percy Fawcett. O romance é o primeiro volume de um total de cinco que narrará os desdobramentos dessa saga, reverenciando obras de mestres da literatura brasileira como Guimarães Rosa e Graciliano Ramos.
A narrativa é construída em primeira pessoa e organizada em duas linhas temporais: o presente, centrado na velhice do protagonista, e o passado, que detalha sua infância e juventude. A história perpassa temas como verdade, mentira e memória, contradições da natureza humana, Brasil histórico e suas narrativas, culpa, arrependimento e redenção, e relações familiares.
Sobre esse último tópico, o autor revela um toque pessoal. “Fiz um exercício de reflexão: como eu seria, daqui a 30 anos, quando minha filha, já adulta, sequer me conhecesse”, conta Kleiton Ferreira, complementando: “O processo de escrita foi criar uma metáfora para isso, começando por criar também um narrador mentiroso, que iria se justificar pelos erros, transferir a culpa, para no fim reconhecer o fracasso humano.”
Uma obra instigante para compreender as entranhas do Brasil
A trama começa na década de 1980, com o protagonista — um homem de mais de 70 anos — trabalhando como zelador de uma escola pública numa vila rural. Enquanto tenta estabelecer contato com a filha que desconhece o parentesco, relembra os desafios do início de sua vida. A narrativa retorna então ao passado, quando o rapaz órfão vivia com os tios em uma casa paupérrima no interior da Bahia. De lá, é catapultado para o fogo cruzado entre grupos revolucionários, legalistas e desertores, percorrendo caminhos controversos e experimentando situações limites.
Uma das qualidades inegáveis do livro é que nada parece forçado ou inverossímil. Kleiton sustenta com habilidade cada reviravolta nas mais de 360 páginas. Fatos e personagens históricos são apresentados com riqueza de detalhes, resultado de extenso trabalho de pesquisa. A composição de cenas contundentes, combinada a diálogos rápidos e marcantes, confere à narrativa um estilo cinematográfico.
O conjunto da obra evidencia a influência de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, ao mesmo tempo em que Kleiton Ferreira entrega uma obra singular, instigante e relevante para compreender as entranhas do Brasil.
O juiz escritor
Kleiton Ferreira nasceu e vive em Arapiraca (AL), região metropolitana do agreste alagoano. Formado em Direito, trabalhou como montador de móveis e carteiro antes de ingressar na área jurídica, primeiro como estagiário da Justiça Federal e depois como advogado. Em 2019, foi aprovado para o cargo de juiz federal.
Sua trajetória inspiradora rendeu o livro “Na última vaga: De montador de móveis a juiz federal: a luta para ser aprovado no concurso mais difícil do Brasil” (Editora Labrador, 192 págs.), lançado em 2024.
No exercício da magistratura, Kleiton destaca-se pela sensibilidade com que atende as pessoas. Trechos das audiências públicas são compartilhados nas redes sociais — no Instagram, o juiz soma 2 milhões de seguidores — e registram milhares de visualizações e comentários elogiando sua empatia e seriedade, especialmente no atendimento a trabalhadores prestes a se aposentar.
O cenário jurídico também inspirou seu romance anterior, “A espada da justiça” (Editora Labrador, 160 págs.), protagonizado por um juiz federal refletindo sobre a vida e o trabalho após a chegada de um jovem substituto. Com Crônicas de um mentiroso – Era uma vez no Nordeste..., Kleiton demonstra maturidade literária e dá mais um passo na consolidação da carreira como escritor.
“Primeiro, a aproximação familiar (a tempo) com relação à minha filha; segundo, a reflexão sobre os erros do passado (que em alguma medida o protagonista também comete); e o poder do amadurecimento, pois como Guimarães Rosa dizia: ‘o melhor da vida é que as pessoas podem mudar’”, reflete o autor.